[Conto] O Segundo Portal

O SEGUNDO PORTAL

“E então vinte séculos de sono pétreo se torturaram em pesadelo com o balançar do berço.

E que rude fera, sua hora enfim chegada, se arrasta até Belém… para nascer?”

Yeats, “A Segunda Vinda”

OS CÂNTICOS AUMENTARAM DE INTENSIDADE e Eureka sentiu como se fosse desabar dentro de si mesma. O show de luzes então parou de forma abrupta, e a pequena criatura ficou mais atordoada, mas pelo menos consegui respirar com o escuro repentino.

Ela não havia podido pôr as patas no rosto para se proteger, muito menos para simplesmente ocultar seu desconforto terrível. O culto da Igreja da Libertação iria reparar na hora em sua fraqueza, e a missão da pequena criatura terminaria nesse momento.

Eureka refletiu no escuro sobre a necessidade de pensar em si como pequena criatura. Em sua forma mais costumeira – pelo menos nos últimos tempos – ela era alta e desproporcional; “pequena” não seria um adjetivo adequado para descrever aquele animal antropomórfico, de patas gigantescas quando comparadas com a finura de seus braços e pernas longos; aquele animal de pelos de um vermelho muito forte, apenas quebrado pelo amarelo quase dourado de uma luz que vinha de dentro daquela fada de cabeça de hiena.

As pequenas asas – essas, sim, realmente pequenas – dispersavam uma poeira luminosa na escuridão que havia tomado a igreja. Eureka fez um esforço para mantê-las imóveis e chamar menos atenção do que já deveria estar chamando. Ela devia se concentrar em ser pequena; manter seu ser pequeno, quase castrado… para que os sacerdotes da Igreja da Libertação não percebessem quem ela era: a Segunda Chave da TRANSFINGE.

Durante os últimos meses, igrejas como aquela haviam brotado em vários pontos da região que um dia Eureka havia chamado de lar. Antes uma grande savana, agora um criadouro de guerras e um abatedouro de almas nas mãos de aproveitadores como Simão, o celebrante do culto daquela Igreja da Libertação.

Na periferia da cidade que fora rapidamente construída justamente onde Eureka lembrava ser o grotão ancestral de sua tribo, estava uma das igrejas do novo culto que a fada licantropsicodélica sabia ser mais um dos esquemas de Mordekai, e Simão não passava de um fantoche.

As luzes se reacenderam aos poucos numa gradação suave, e Eureka sentiu o impulso de acompanhar esse ritmo expondo seu poder, flutuando talvez, jorrando talvez jatos de sua pura luz sobre os a multidão de desesperados que Simão e Mordekai exploravam.

Seres zooantropomórficos como ela mesma, um bando de indivíduos bastante diferente entre si mas todos animais racionais, ou mesmo mais que racionais como ela mesma. Eureka distingiu uma gueparda de pelo claro vestindo roupas de mendigo; um cão negro de pérolas no lugar dos olhos, contando as moedas que doaria ao templo da Libertação; uma mulher loira de batina que se moldava bem a seu corpo, ajustando os piercings e brincos em suas orelhas de morcego e penteando as grandes antenas de mariposa que lhe saíam da testa; um grande sapo de tentáculos no lugar da boca, murmurando frases desconexas que eram repetidas pelos fiéis ao seu redor; e muitos outros que enchiam o recinto do culto.

E entre eles, Eureka finalmente distinguiu sua presa.

Aquele que ela havia vindo buscar, e dessa forma acabar com o empreendimento da Igreja da Libertação.

As formas femininas de uma chinchila seminua, de pelo esverdeado e olhos muito atentos ao pastor Simão no palco, ficaram nítidas para Eureka como ilusões vestidas por Mordekai, o “xogum por trás do trono”, o responsável secreto por todos aqueles templos que exploravam o desespero das criaturas da região onde ela um dia havia nascido e sofrido os ritos de passagem.

Usando seus dentes amarelados, a fada soltou um assobio tão forte que seus lábios sangraram; mas a força do assobio rasgou os espaços e da fenda próxima a Mordekai disfarçado saíram tentáculos cor de abóbora, as ventosas ávidas por capturar enfim o Segundo Portal da TRANSFINGE. A forma vulpina de Saavedra, a Oitava Chave, ultrapassou os umbrais do teleporte repentino executado por Hyennah, e a chinchila esverdeada arregalou os grandes olhos em pânico, um terror que a fada sabia justificado mas também pouco frequente para Mordekai.

O kumiho Saavedra, uma raposa bípede de pelo abóbora e negro, seis grandes tentáculos brotando das costas, cascos de fauno batendo no chão de mármore da Igreja da Libertação. Saavedra, o ex-membro da horda dos Vultos Vulpinos, um dia chamado de Belial, uma noite chamado de Esfinge Negra, agarrou a chinchila assombrada pelo pescoço, aproximou seus focinhos, e num sussurro macabro que acabou sendo ouvido por toda a assistência, disse:

“Venha comigo se não quiser que eles saibam a verdade.”

TRÊS HORAS DEPOIS, três formas bastante ferais corriam pelas savanas que restavam em Dumanda, o país da guerra e da fome.

Percorrendo uma estrada asfaltada em péssimas condições que feria e rasgava o solo da savana, em alta velocidade as formas de uma hiena e uma raposa eram seguidas a curta distância por um cãozinho braquicéfalo de tamanho insignificante.

“Saavedra, o culto da Libertação não foi extinto,” ganiu em meio a um salto sobre uma pedra a hiena, naqueles sons animais que querem dizer mais do que parecem. “Não era isso que viemos fazer aqui, não era pra fazer um Pacto Quimérico na base da chantagem.”

“Sua boba, o culto é só uma das merdas que deixam este lugar fedendo. Você não quer recuperar sua terra natal?”, respondeu a voz quase humana do raposo, “Mordekai vai ser muito mais útil como Segundo Portal se manter os contatos dele… e ele mesmo pode reconstruir a terra que ajudou a devastar.”

“Eu só espero que você esteja certo e esse não seja mais um de seus planos mirabolantes, Saavedra. O último acabou com você morto.”

“Ah, mas eu sempre retorno, não é mesmo?” riu a voz antes de perder por um instante o fôlego enquanto os três aceleravam diante do horizonte que perseguiam.

***

Atrás dos dois, Mordekai fazia mais esforço para conter sua frustração do que para acompanhar o ritmo daqueles animais maiores e mais rápidos. Sua mente compensava o tamanho ínfimo de sua forma feral, e essa mente tentava arquitetar uma forma de se livrar daqueles dois.

Eles que aguardassem, pensou o shih tzu. Eles que aguardassem sentados, que ele haveria de ganhar alguma coisa com aquela servidão à TRANSFINGE e essa coisa, o que quer que fosse, ajudaria Mordekai, o xogum destronado, a se vingar de Eureka e Saavedra.

Conto escrito por Malena Mordekai

Ilustração: Rodolfo Carvalho

http://transphinxfables.tumblr.com/post/98715646918/o-segundo-portal

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